quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Uma Pseudo Escritora e as Tangerinas


A INSPIRAÇÃO


1º dia
As frases vinham à minha cabeça com a simplicidade da água que caía da torneira. O filme tinha sido ótimo, pensei nisso enquanto fazia pipi no banheiro. Chorei um pouco no escuro do cinema e isto funcionou como uma espécie de bálsamo para a ansiedade. Era um conto, quase certo, sem uma estrutura lógica obviamente, porque afinal de lógica eu nada tinha. Poética sim, lógica de jeito algum. A consciência era um fator estranho ao fluxo das palavras, que nasciam num canto como uma planta. E eu olhava esta planta acreditando que talvez esta fosse uma planta exótica e rara que finalmente me levaria a algum lugar no meu futuro artístico.

Não sabia quanto tempo esta fluência levaria para fazer crescer à planta, por isso, para não secá-la e terminar apenas com um punhado de terra seca nas mãos, peguei um táxi correndo para casa. No caminho, regava aquelas palavras murmurando-as baixinho, mas não tão baixinho assim. O motorista me ouvia, pensava que eu era maluca e isso me agradava. Conspirava a meu favor esta imagem da mulher louca dentro do táxi.

Queria chegar antes que Flavio, meu filho e Roberto meu marido voltassem. Rezei pelo caminho para que Flavio estivesse passeando com seus amiguinhos naquela linda tarde de sábado. Pelo menos tinha certeza que Roberto ainda demoraria um bom tempo naquele encontro de trabalho. No que dependesse de mim, ele poderia estar com dois outros marmanjos ou com uma loura de xoxota depilada ou até com toda esta turma. A única coisa que realmente desejava era chegar em casa, ligar o computador e começar a escrever meu conto. Aquele que finalmente me levaria ao corredor da fama com os tapetes vermelhos da glória.

Ao chegar, minha cadela me cumprimentou com seus uivos. Senti um cheiro ruim e logo me deparei com o fato que ela tivera uma diarréia. Ainda pressentindo as folhas de poesia da minha estranha planta, corri para achar pano de chão, Veja multiuso e papel absorvente. Ela ainda estava viva. Continuou viva até que eu terminasse de limpar tudo, mas não se manteve assim depois do telefonema de minha mãe que reclamava que eu não havia dado suficiente atenção à prova de Português de Flavinho, justo eu, que até queria ser escritora.

Fiquei arrasada. Não pude ajudar minha planta a se tornar a árvore ou flor que ela estava destinada a ser. Mal tinha conseguido perceber se aquela seria uma planta capaz de viver por si mesma, sem meus cuidados ou se era uma daquelas espécies caprichosas que escolhiam ter apenas um pouco de luz e calor para se fazerem desabrochar. Tudo o que pude sentir foi mais uma vez o fracasso, aquela visão de um bicho perdido, caminhando a esmo no fim de mais um dia.

2º dia
No apartamento, tudo era uma bagunça descuidada. Não me importava com a madeira cheia de cupins que cercava o ar-condicionado. O único lugar que realmente importava era um cantinho onde colecionava minhas miniaturas.

Eram zilhares. Um aparelho de porcelana branca para o chá. Bonecos de Vitalino. Uma girafa e um gato tailandês. Uma caixa de madeira trabalhada em marchetaria. Um par de bruxos. Cada coisa daquelas era uma vida, uma história. Na verdade, cada objeto daqueles remetia a um conto e cada conto era simplesmente a miniatura de uma vida. Todos ali no mesmo lugar do apartamento, esperando pela poeira dos dias ou por meu olhar aceso por dentro pela vontade de domesticá-los, compreendê-los em sua essência, descrevê-los com justiça e arte. Era surpreendente como podiam conviver tão bem deuses africanos com garrafinhas de cachaça Volúpia paraibanos. A vida era pura arte, bastava que eu tivesse o talento e a perspicácia de seguir seus movimentos.

Mas aquele dia minha agenda estava cheia. Passeio com o cachorro, ginástica, estágio, estudar para a prova de Flavio e ajudá-lo com a redação, cozinhar o arroz integral e a lentilha, além de ir ao hortifrutti para comprar duas beringelas, brócolis, bananas, mamões, abobrinhas, figos e shitakes.

Antes de dormir, sonhei com algumas outras frases daquele estranho conto, que cada vez mais se parecia com uma planta com suas folhas caídas à beira de um rio em que eu passeava de balsa.

Quantos dias mais haveria de aquela planta viver sem que suas palavras fossem registradas no computador?

3º dia

Acordei sentindo que aquele era um glorioso dia. Era o primeiro dia do resto da minha vida. Cumpriria minhas tarefas na manhã, mas me esperava uma tarde inteira livre, sem vivalma em casa para me demandar. Dessa vez conseguiria finalmente escrever meu conto.

Animada, fui cumprindo minha agenda. Passeio com a cadela, ginástica para manter o corpo saudável numa mente saudável, três telefonemas de retorno aos clientes, um artigo de 10 parágrafos para a revista da minha amiga Dora que contava comigo para fazer de sua revista algo agradável e variado, uma ida rápida ao supermercado para comprar sabonete e pasta de dente, fazer uma salada e despachar o marido para o trabalho. Liguei o computador, mas de repente entra Flavio com quatro amigos. Eles precisariam fazer um trabalho de grupo e eu não poderia usar mais o computador.

Tentei escrever no caderno algumas frases que surgiam como os últimos espasmos daquela planta que nunca tive sequer a chance de ser apresentada. Adeus fama, fortuna. Adeus grandes mudanças. Adeus raio de sol. Restava uma vida cordata à sombra de meus homens.

Não consegui dormir. Por cinco dias, passei a ter insônia, adquiri a mania de medir minha pressão e sentia, permanentemente, aquela sensação horrível de morte eminente.

4º dia
Consegui fazer um conto de duas páginas em vinte minutos. Não alcancei fama e fortuna, mas pelo menos, aprendi a espremer o suco da minha imaginação em duas páginas. Neste dia, também descobri que não se batiam tangerinas no liquidificador para se fazer suco e sim que o suco de tangerina era feito das tangerinas pocans. Estas devem ser espremidas como laranjas. E pronto, você tem um suco de tangerina.

Deus fez o mundo em seis dias, errou um monte. Em quatro, aprendi a fazer suco de tangerina e a ser a tangerina. Era emocionante ser uma tangerina numa pradaria de asfalto no Rio de Janeiro.

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