segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Vôo- segundo conto de como surge o fascismo no Brasil

João e José eram pilotos da aviação comercial e tinham a mesma idade. Quando João entendeu que sua próxima escala coincidiria com a de José no próximo vôo sentiu náuseas o dia inteiro. Voar com José era a pior tortura imaginável. José era calado e não costumava conversar sobre política. Mas seu perfil no Facebook o delatava. Todos os dias, aquele que seria o piloto em sua próxima viagem, dava notícias sobre o Impeachment, que José chamava de golpe. Trazia artigos imensos que João só lia quais eram os títulos. Se aprofundasse a leitura cansava e já parava de ler.

De jeito algum haveria de ler aquele bando de comunistas safados que defendiam Lula, o ladrão. Além do que bastava ler os títulos pra saber do que se tratava. Pra que ler aquele monte de letras? Só os petistas não viam o mequetrefe que defendiam.

O que mais incomodava a João é que ele adorava José. Quando se conheceram, lembra que achara José um cara diferente da maioria, tão atencioso, gentil, sabia ouvir e falar na hora exata e tinha um grande senso de humor, suas observações eram brilhantes. A melhor companhia para vôos longos. João e José se divertiam tanto juntos que chegaram a dividir um apartamento em Campinas por alguns meses.

A namorada de João tinha ciúmes de José porque João falava demais do amigo, qualquer coisa era pretexto para o assunto se tornar mais uma incrível façanha de José. Chegou ao ponto dela lhe dizer que João fazia sexo com ela, mas a quem ele realmente amava era a José. João ficou furioso com estas observações da namorada e foi por um triz que não terminaram.

Foram tempos muito felizes, mas agora tudo tinha sido destruído pelo PT. O PT é quem tinha criado o ódio de classes e o racismo. Nunca houve racismo no Brasil. Os petistas eram monstruosos em tornar um povo tão gentil em pessoas tão horríveis. E o PT é quem havia transformado seu melhor amigo em pior inimigo. Os petistas eram comunistas, bolivarianos, ladrões. Todo petista é criminoso, João pensava. Só não entendia como José, o cara mais honesto que ele conhecia, o mais generoso, havia se tornado justo um petista. Lastimava, mas nunca seria amigo de um sinistro comunista.

Como é que ele João seria o copiloto da nave em que José seria piloto nestas condições? Ele poderia desmarcar o voo, conseguir um atestado médico. Agora mesmo, já havia vomitado. Quem sabe não estaria mesmo doente? Será que vômito poderia ser uma zika? Mas ele pensava que podia fazer José desistir desta bobagem toda de politica, esta coisa horrível que separa pessoas e de nada serve. Quem sabe uma última conversa? Prometia a si mesmo que desta vez não perderia a cabeça. Da última os dois foram apartados por pessoas na rua. Mas desta vez seria diferente. Ele não iria sequer aumentar o tom de voz. Falaria o óbvio: Lula tem um sítio em Atibaia com o dinheiro público, é ladrão e você José é o meu melhor amigo, o mais honesto de todos não pode ser um petista, pronto não diria mais nada. Até a palavra petista lhe dava nojo. Saiu correndo pra vomitar.

Os dias passavam como se fossem segundos. Finalmente era o dia do vôo. Mil vezes pensara em desistir, mas não era homem de fugir. Quando se encontraram José lhe desejou bom dia e foi com muita dificuldade que respondeu. No caminho, João deixou cair seu quepe por puro nervosismo. José o apanhou do chão e João mal conseguiu dizer “obrigado”. Olhava para José e só conseguia pensar num Giff animado de coração vermelho pulsando na Linha do Tempo do colega. Malditos vermelhos. Iam destruir o país. Agora a imprensa internacional chamava o Impeachment de Golpe e até no Twitter da própria Globo a palavra golpe havia sido escrita e depois apagada. Algum jornalista comunista deve ter sido o responsável pelo erro. Mas o fato é que estes vermelhos malditos tinham destruído uma amizade de anos. Ah aquela vaca da Dilma. Não poderia perdoar nenhum deles. Terrorista safada.

Começaram a discussão quando preparavam a cabine. João começou a gritar sobre “o Brasil jamais será vermelho” e repetir as frases que polulam em toda a internet num fôlego só. No que João chamou Dilma de terrorista safada, José rebateu descrevendo sobre as diferenças entre guerrilha e terrorismo. Guerrilha, ele dizia com calma irritante, era quando um grupo combate um exército usando táticas de surpresa numa guerra assimétrica em que o guerrilheiro é o elo mais frágil que se contrapõe ao Exército do Estado. São razões políticas em que o guerrilheiro está em desvantagem em relação ao Exército ou a polícia. No mundo inteiro houve muitos guerrilheiros que foram perdoados e no Brasil uma grande parte da juventude que combatia à Ditadura havia se engajado na guerrilha, inclusive José Serra do PSDB que havia sido da facção chamada de AP, Ação Popular.

José se manteve argumentando. Terrorista é aquele que tem uma ação de terror onde quanto mais gente morrer, melhor. Não há termos de comparação entre uma ação onde se morrer alguém é por uma espécie de acidente colateral de outra em que o que acidente é quando não morre ninguém, o terrorismo. Por isso guerrilheiros são considerados presos políticos e muitas vezes perdoados e terroristas não.

Foi quando João falou que Dilma era uma ladra, que já havia assaltado bancos. José, mais uma vez com calma, calma esta que irritava profundamente a João, argumentou que ladrões ficam com o dinheiro em benefício próprio, coisa que não havia sido o caso de Dilma que o dinheiro que roubara era para uma ação visando o fim da Ditadura, nada ficara para si e sim para uso de seus companheiros que assim podiam fugir da polícia, usar disfarces, financiar seus gastos comuns.

João não lembra se ligou ou não a GPU, a Ground Power Unit que era a fonte externa de energia para não haver descarregamento de bateria da aeronave. Lembra que tentou ir para cima de José, tão calmo, tão enervante, tão bonito para dar-lhe um soco na cara e este conseguiu afastá-lo num repelão e prosseguindo nos procedimentos protocolares, testando os sistemas e botões da cabine, configurando pra decolagem o avião.

João pelo menos conseguiu fazer a inspeção visual de rotina que era a parte que lhe cabia. Pediu para sair um instante e viu que o avião estava cheio e que algumas celebridades como Ana Maria Braga e Jair Bolsonnaro estavam entre os passageiros que iriam de Porto Alegre para Manaus. Ana Maria Braga estava indo para um encontro de chefs donas de casa e o Bolsonaro estava indo para lá para o encontro de jovens de seu partido, o Partido Social Cristão. Foi por um acaso que João sabia destas coisas porque havia folheado a revista Caras nesta semana quando foi cortar o cabelo. Ouviu um rápido diálogo entre os dois:
- Pois é, Ana, estou indo pra Manaus pra convencer os jovens a entrarem para a política e assim restaurarem a Ditadura.
- Ah, Eu não quero nada com política Bolsonaro. Política é muito chato. Meu negócio é ensinar às senhoras a cozinharem bons pratos e assim segurarem seus maridos pela boca.
- Muito importante o seu trabalho e acho que está colocando as mulheres no lugar certo. Já chega esta Letícia Sabatella toda bonitona incitando o pessoal a defender o governo.



João voltou se sentindo um pouco melhor para a cabine. Foi liberado o embarque. João pensou nos olhos cor de mel de José e mais uma vez sentiu que suas entranhas se contorciam de ódio. Determinado a fazer seu colega capitular destas ideias marxistas, resolveu jogar sua última cartada. Falou que a Russia iria invadir o Brasil com a ajuda das FARCS da Venezuela e que José se arrependeria de sua confiança cega em pessoas inescrupulosas que só queriam o poder. José estava preparando o computador e João cada vez mais ansioso agarrava suas mãos. Mesmo assim, na hora de decolar, José falou “Positive Rate” e ele João respondeu “Gear Up” mas o que desejava de verdade era apertar aquele belo pescoço forte de José até ele não ter mais uma única palavra mentirosa para dizer.

Aquele seria um voo longo com uma conexão em São Paulo. João estava vermelho e o tempo inteiro repetia para José que ele não teria como escapar dos russos que obrigariam sua mãe a dividir seu bom apartamento com os mendigos de rua. José olhou para ele e disse que aquele não era um bom momento para discussões, que tinham a responsabilidade de levar todas aquelas pessoas em segurança até seu destino final. João rebateu que ele só estava dizendo isso porque não tinha mais argumentos.

José riu. Primeiro argumento: é falso que no comunismo todos serão obrigados a dividir suas propriedades assim. Não há lugar algum aonde Marx tenha dito nada semelhante e não foi assim que ocorreu em nenhum regime comunista. Segundo: a União Soviética acabou há muitas décadas atrás, a Rússia não tem nenhum interesse em dominar nenhum lugar do mundo, já basta a Rússia cuidar de seu povo e de suas fronteiras como os demais países do mundo. Terceiro: Hugo Chavez já morreu e as FARCS são da Colombia e um presidente de direita negociou com as guerrilhas colombianas um acordo de paz com a ajude de Cuba e os guerrilheiros estão prestes a depor suas armas e entrar para a política.

João com os olhos rútilos encarava sem piscar José, sua boca carnuda, seus lábios avermelhados- será que ele foi à praia?- sentiu que estava excitado sexualmente e isso o irritou mais ainda- como pode ser estar sentindo isso por um outro homem, se perguntava e não gostava de estar assim, sentia-se frágil, nu, desmascarado e num súbito impulso voou no pescoço do companheiro.

A luta durou apenas alguns minutos. Passageiros em polvorosa se perguntavam o que era aquilo que estava acontecendo na cabine dos pilotos. Estado Islâmico? Não, não podia ser. Só ouviam baques e gritos abafados. Os minutos foram suficientes para que o momento de aterrisagem em São Paulo se aproximasse e nenhum dos dois desse conta do fato. Conseguiram se separar e cair em si a tempo de cuidarem para que o avião pousasse. Prepararam o trem de pouso, mas alguma pane estava ocorrendo e o trem de pouso não descia.

Após alguns instantes de suspense, o trem de pouso voltou a dar sinais de vida. Entretanto, o piloto automático não fora corretamente programado porque nenhum dos dois conseguira efetivar corretamente os procedimentos padrão da aeronave.

No dia seguinte a manchete dos jornais: Avião Cai Sobre Condomínio de classe alta no bairro de Jardins (São Paulo). Não há sobreviventes. A Aeronáutica investiga as causas do acidente que matou todos os passageiros, tripulação além de fazer dezenas de vítimas em terra.