quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

são meninos

São meninos.
Menino Jesus também era.
Cresceu virou milagre.
estes crescem pro milagre chamado Brasil,
aquilo que arde,
uma brasa o brasil que se consome a si mesma
e cozinha muitos horrores
sem jamais perder a beleza
eis o mistério
o país nos consome e vive na gente
cada vez mais indistinto
faz todos os dias meninos e meninas
a quem ninguém quer cuidar
crescem como nossos matos
e depois as formigas devoram
São meninos.
Menino Jesus também era.
Mas pra sorte dele, Jesus era filho de Deus.
Estes meninos são filhos de quem?
quem cuida deles?
quem são seus pais?
Criança é bicho lindinho e fofo
estes moleques
pernas escuras e sujas
magras e longas
serão mesmo meninos?
os olhos de bola
flutuam negros na tigela
lá se foi um menino

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

quase sem ser

Eles chegam junto
São Marias Josés Joões
São suspeitos
São inocentes
São culpados
São invisíveis
São quase todos pretos
São sempre mais pobres
São quase sem ser
Um nada feito de bocas e pés pra correr
Nenhum carteiro lhes acha
Salvo o tiro certeiro da morte
Deles ninguém quer nada
Salvo distância
Porque têm um cheiro
O cheiro dos bichos abandonados
Até suas mães deles querem distância
A eles cabe o milagre de resistir
Ao sol ao céu ao mar profundo
Os verdes amarelos azuis
Todos tingidos em sangue
A correr a vazar a se acabar
Sempre tarde demais- Cynthia Dorneles

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

a primavera chegou mas as flores não sorriram
agosto não terminou
homens tristes arreganham os dentes
vorazes
e vazios

o dia de hoje trata-se de escolher
qual miséria lhe interessa mais
calar todos os gritos
sufocar todas as lágrimas
seguir em frente
quando o caminho teima em ir para trás

vivemos num labirinto
sem leste nem oeste
estibordo nem bombordo
não há nascer do sol
e as sombras tomam conta de tudo

nascem os pássaros
não se ouve um pio

só aprendemos a circular
nosso único norte
parece ser nosso próprio umbigo

o Brasil foi feito para ser brasa
mas é de cinzas coberto
não me falem em destino
quando um dia houve em que tanto poder
foi jogado no ralo

a mim parece um desatino
serem os juízes os maiores ladrões
e os réus não santos
mas muito mais probos

de que valem as leis?
de que vale a honestidade?
de que vale um voto?

aqui só sabem dar socos
chutes e pontapés
sabemos tantos palavrões
e nenhuma palavra
lavra teu buraco
verme que nunca viu a luz
lavra mais
voltas pro pó aonde viestes
criatura sem viço nem cor

volta pra tua cova
e que esta seja rasa
como tua vida
aonde jamais veio luz


domingo, 10 de julho de 2016

O Sorriso da Fotografia



aí você olha aquele casal feliz, com seus filhinhos rosados e bochechudos, cercados de amigos, morando naquele lugar super bacana e pensa, diante de seus 1001 fracassos amorosos e financeiros onde foi que você errou. E eu te respondo: errou muito em muitos lugares, mas sossegue, o casal errou também.

Há certas coisas que são assim: você apresenta a fotografia de um momento e acha que aquele momento foi sempre igual e será eterno.

Nada é eterno e as coisas não foram sempre assim.

É que nem estas fotos de ex obesos que a revista apresenta o cara enorme e depois a foto dele sendo triatleta com super corpo magro.

Quantas coisas acontecem entre a pessoa imensa da foto e a pessoa atlética? Quantas mil batalhas perdidas e ganhas até chegar no momento da foto? Nenhuma das noites mal dormidas saem na foto, nenhum dos momentos de angústia saem na foto. Até porque não se fazem fotos da angústia e da insônia.

O momento da foto é apenas isso: um momento. O ex obeso pode ficar magro e depois acabar engordando de novo, ou ainda deixando de ser obeso mas adquirindo depressão ou coisa que o valha.
A ideia de felicidade permanente é apenas uma ilusão. Ou você que fez a foto sorrindo permaneceu sempre sorrindo até seus maxilares quebrarem de tanta tensão pra manter o sorriso for ever? Só na foto o sorriso é eterno.

Entenda uma coisa: não existem romances de filmes na vida real. O filme é um filme. Tudo é produzido pra dar aquela impressão de coisa grandiosa e grandiloquente. A música, a iluminação, a preparação dos atores, a maquiagem, o enredo, o ritmo, a fotografia, cada detalhe de um filme é previamente pensado para ser algo que dará inveja em todas as mocinhas e deixará todos os mocinhos com tesão.

O amor na vida real é confuso.

O amor na vida real é gago, escolhe mal as palavras, derruba coisas que não podem ser derrubadas, a mocinha tem mau hálito, o mocinho tem espinhas e chulé. A gente se apaixona por figuras patéticas e quando a paixão vai embora a gente olha nossas paixões de mau hálito e chulé com toda generosidade porque nós próprios sabemos que de vez em quando temos gases, somos sujeitos e fazer foto com a casca do feijão no dente e queremos que os outros tenham compaixão de nossas próprias limitações.
A fila anda? Pessoas podem ser substituídas por outras de verdade ou trata-se da raposa dizendo que as uvas estavam verdes?

Cada vez que a fila anda é porque algo não deu certo numa relação e nós, raposas com alguma auto-estima dizemos então que a fila andou. Mas a real-real é que não há fila.

Pessoas não substituem outras jamais. Cada um é diferente um do outro e na memória afetiva guardaremos cada pessoa por quem um dia sofremos ou tivemos prazer. A fila andar quer dizer que existem outras pessoas com quem praticaremos o sexo e com quem faremos novos erros e acertos. Mas nunca serão substituídas. Felizmente, a dor pára de doer tal como o sorriso da fotografia se desvanece. A vida continua, exceto quando se morre.

O amor não tem um sentido, uma ordem. Tal como a vida. A vida é um caos mesmo. Nós damos um sentido à nossa vida porque precisamos destes sentidos, precisamos destas coisas significativas para nortearmos nossa cabeça. Mas em si nada tem um sentido. Ou se tem, ele sempre nos escapa.
Acredite numa coisa: ninguém é tão feliz assim sempre, somos felizes por instantes e estes instantes são o que faz valer a viagem. Precisamos todos aprender a sofrer sem nos desesperar, precisamos todos adquirir flexibilidade e lidar com a dor. Sem a dor, não saberíamos o que é o prazer. É porque a fome existe que o alimento tem sabor.

Faça a si mesmo um favor: não leve as coisas tão a sério. A vida é o que nos acontece quando estamos distraídos. Mesmo.

O Sorriso da Fotografia

aí você olha aquele casal feliz, com seus filhinhos rosados e bochechudos, cercados de amigos, morando naquele lugar super bacana e pensa, diante de seus 1001 fracassos amorosos e financeiros onde foi que você errou. E eu te respondo: errou muito em muitos lugares, mas sossegue, o casal errou também.

Há certas coisas que são assim: você apresenta a fotografia de um momento e acha que aquele momento foi sempre igual e será eterno.

Nada é eterno e as coisas não foram sempre assim.

É que nem estas fotos de ex obesos que a revista apresenta o cara enorme e depois a foto dele sendo triatleta com super corpo magro.

Quantas coisas acontecem entre a pessoa imensa da foto e a pessoa atlética? Quantas mil batalhas perdidas e ganhas até chegar no momento da foto? Nenhuma das noites mal dormidas saem na foto, nenhum dos momentos de angústia saem na foto. Até porque não se fazem fotos da angústia e da insônia.

O momento da foto é apenas isso: um momento. O ex obeso pode ficar magro e depois acabar engordando de novo, ou ainda deixando de ser obeso mas adquirindo depressão ou coisa que o valha.
A ideia de felicidade permanente é apenas uma ilusão. Ou você que fez a foto sorrindo permaneceu sempre sorrindo até seus maxilares quebrarem de tanta tensão pra manter o sorriso for ever? Só na foto o sorriso é eterno.

Entenda uma coisa: não existem romances de filmes na vida real. O filme é um filme. Tudo é produzido pra dar aquela impressão de coisa grandiosa e grandiloquente. A música, a iluminação, a preparação dos atores, a maquiagem, o enredo, o ritmo, a fotografia, cada detalhe de um filme é previamente pensado para ser algo que dará inveja em todas as mocinhas e deixará todos os mocinhos com tesão.

O amor na vida real é confuso.

O amor na vida real é gago, escolhe mal as palavras, derruba coisas que não podem ser derrubadas, a mocinha tem mau hálito, o mocinho tem espinhas e chulé. A gente se apaixona por figuras patéticas e quando a paixão vai embora a gente olha nossas paixões de mau hálito e chulé com toda generosidade porque nós próprios sabemos que de vez em quando temos gases, somos sujeitos e fazer foto com a casca do feijão no dente e queremos que os outros tenham compaixão de nossas próprias limitações.
A fila anda? Pessoas podem ser substituídas por outras de verdade ou trata-se da raposa dizendo que as uvas estavam verdes?

Cada vez que a fila anda é porque algo não deu certo numa relação e nós, raposas com alguma auto-estima dizemos então que a fila andou. Mas a real-real é que não há fila.

Pessoas não substituem outras jamais. Cada um é diferente um do outro e na memória afetiva guardaremos cada pessoa por quem um dia sofremos ou tivemos prazer. A fila andar quer dizer que existem outras pessoas com quem praticaremos o sexo e com quem faremos novos erros e acertos. Mas nunca serão substituídas. Felizmente, a dor pára de doer tal como o sorriso da fotografia se desvanece. A vida continua, exceto quando se morre.

O amor não tem um sentido, uma ordem. Tal como a vida. A vida é um caos mesmo. Nós damos um sentido à nossa vida porque precisamos destes sentidos, precisamos destas coisas significativas para nortearmos nossa cabeça. Mas em si nada tem um sentido. Ou se tem, ele sempre nos escapa.
Acredite numa coisa: ninguém é tão feliz assim sempre, somos felizes por instantes e estes instantes são o que faz valer a viagem. Precisamos todos aprender a sofrer sem nos desesperar, precisamos todos adquirir flexibilidade e lidar com a dor. Sem a dor, não saberíamos o que é o prazer. É porque a fome existe que o alimento tem sabor.

Faça a si mesmo um favor: não leve as coisas tão a sério. A vida é o que nos acontece quando estamos distraídos. Mesmo.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

o lugar certo do amor

Amor. Amor é bacana. Amor é lindo. Amor é algo fantástico. Mas tem algo que me incomoda, não no amor, mas na forma como muitas pessoas- aliás, talvez toda nossa cultura- vê o amor.

O primeiro absurdo: que não se pode viver sem amor.

Se você não respirar por alguns minutos de fato morre. Se você ficar sem comida por algum tempo de fato morre. Se você ficar sem água por algum tempo de fato morre.

Estas são as únicas coisas que sem as quais alguém morre se estiver sem. Todas as demais são "plus" na vida, coisas que se por alguma razão você ficar sem a vida será mais sem graça, ou mais desconfortável, ou mais monótona mas você continuará vivo.

Falo isso porque pessoas matam porque um belo dia vêem seu amor indo embora com outra pessoa. Falo isso porque pessoas se matam quando são deixadas pelo seu amor.

É preciso que se diga e até que se diga muitas vezes: amor não é tudo na vida. Há muitas outras coisas boas, bonitas, fantásticas no mundo.

Estar só e ser feliz é possível sim.

Não é porque não se tem um amorzinho, aquele par para se olhar estrelas que se deva desistir de ter amigos, de fazer coisas bonitas ou boas. Quantas vezes vou eu fotografar estrelas sem par algum. Olhar estrelas não depende de termos namorados. Basta ter olhos de ver. E, se quiser fotografar, uma máquina e a técnica de fotografar estrelas e depois editar a foto. Simples. Indolor.
Não estou aqui fazendo pouco do amor. O que estou é escrevendo para estas pessoas- que são legiões- desesperadas porque perderam o amor, porque não têm amor, porque não encontram amor e se desesperam- que amor definitivamente não é a única coisa gostosa que se faz na vida.

Só pensar no amor ao outro como objetivo e razão de viver chego a ousar dizer que é falta de imaginação e criatividade.

Talvez realmente fundamental seja o amor a si mesmo. Ou gostar das próprias rotinas.

Por amor a si mesmo, a própria pele, se inventar coisas divertidas, boas, dignas para se fazer.
Mas jamais matar ou morrer por amor. Isto é um pouco over. Afinal, se Mariazinha Josefina foi embora, há tantas outras Marias, há tantas outras Lúcias, há tantas outras Beatrizes, há tantas outras Carolinas. Vai matar por que uma não lhe quer havendo outras tantas? Ah, mas Mariazinha Josefina é a única que sabe fazer pinturas com a fumaça do seu cigarro. Ok. Eis um talento raro. Mas não se esqueça que Lúcia sabe falar na língua dos Elfos. Que Beatriz sabe nadar com os golfinhos. Que Carolina entende bebês que não falam. Todos nós temos algum talento raro. Então perder uma namorada não quer dizer perder a habilidade de se fazer gostar e de seduzir.

Se só Mariazinha Josefina caiu na sua cantada, está na hora de se tornar alguém mais interessante e aprender novas cantadas. Não de matar o cara por quem Mariazinha Josefina se apaixonou.

Hora de se reinventar e ser feliz.

domingo, 19 de junho de 2016

como eu odiava a Glaura Maria

como eu odiava a Glaura Maria. A Glaura Maria era a outra afilhada da minha madrinha. Nunca conheci a Glaura Maria pessoalmente. Só via uma foto e a madrinha citando a bendita Glaura Maria toda hora. Meu coraçãozinho infantil odiava profundamente à esta menina de quem eu nada sabia salvo as coisas que a Madrinha falava sobre ela. Eu odiava tanto à criatura que às vezes quando brincava de boneca havia aquela boneca que a outra boneca tratava muito mal e torturava que era a Glaura Maria. Puxava os cabelos, enfiava na água e afogava. Mil torturas de bonecas que eu não poupava na boneca da Glaura Maria.

O próprio som do G com o L e o A me dava gasturas. Tanto que quando na escola tive um coleguinha chamado Glaucon eu não gostava dele por extensão. Era o Gla da Glaura Maria atacando onde não era chamado.

E Glaura Maria jamais foi Glaura. Foi sempre esta coisa que leva horas de nome composto. Glaura Maria. Hoje em dia eu teria compaixão de uma pessoa com nome tão esquisito, mas na época ela era a personificação do meu horror.

Curioso porque na vida real eu encontrava crianças que não gostavam de mim mas a quem eu não nutria sentimento particular algum. No primeiro dia de aula, uma garota chamada Cassandra olhou pra mim e me acertou uma pedrada na testa que me levou imediatamente pro hospital e daí pra casa a quem eu temia, mas não odiava. Eu era gordinha e as outras crianças faziam chacota comigo e eu não as odiava. O mais perto de ódio que tive foi por uma professora de matemática, a Dinah, que me dava notas baixas, mas era mais uma raiva grande do que ódio. Ódio era todo pela Glaura Maria.
Muitos e muitos anos depois quando fui ler livros de Sociologia na minha 1a faculdade que estudavam estes fenômenos sociais de ódio ao diferente eu podia sempre internamente referendar estes ódios com meu ódio à Glaura Maria. A quem eu jamais conheci e que nunca me fez nada de mal mas que me provocavam sensações fortes negativas.

Hoje penso que se algum dia a menina Glaura Maria tivesse se apresentado a mim pessoalmente talvez eu acabasse gostando dela. Ou não. Mas provavelmente não a odiaria. Tenho pra mim que certos ódios muitas vezes se dirigem exatamente às pessoas estranhas, desconhecidas por serem estranhas e desconhecidas. São raivas infantis que tomam dimensão tão mais distantes sermos de certas pessoas.
Então dou meu brinde à Glaura Maria que me ensinou como são pouquíssimo racionais todos os ódios.

domingo, 12 de junho de 2016

meu namorado

meu namorado tem cara de tudo
de príncipe de gato de leão
de macaco de céu e até de sapo
meu namorado é tão bacana
que me ama
e eu não sou nada fácil

namorados

Amor é um passarinho. Não combina com os rótulos nem com as prisões.
Namorados e namoradas não se tem. Namorados e namoradas se celebram.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

o bom barquinho com bandeirinha do Brasil



tão bonito tão vibrante
o barquinho segue
com as gaivotas
mar acima mar abaixo
na chuva no sol
segue o barquinho
cor vermelha branca amarela
bandeirinha do Brasil.
não tem tempo ruim
pra barquinho bom
quando for um velho barquinho
será ninho de pequenos caranguejos
brincadeira de criança
esconderijo dos namorados.
o bom faz sonhar
e some no tic tac do relógio
a gente não sabe mas
o sonho nos faz sorrir mais fácil
o barquinho chama violão
voz e canção
vira pintura e oração
tempos melhores
alegrias e caminhos
o barquinho não está no jornal
é como os passarinhos
delicadas coisas que só fazem bem
um bom barquinho
não faz xixi na cama
os meninos e os barquinhos vão juntos
são pra sempre amigos
pra sempre delicadezas
de um instante só

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Vôo- segundo conto de como surge o fascismo no Brasil

João e José eram pilotos da aviação comercial e tinham a mesma idade. Quando João entendeu que sua próxima escala coincidiria com a de José no próximo vôo sentiu náuseas o dia inteiro. Voar com José era a pior tortura imaginável. José era calado e não costumava conversar sobre política. Mas seu perfil no Facebook o delatava. Todos os dias, aquele que seria o piloto em sua próxima viagem, dava notícias sobre o Impeachment, que José chamava de golpe. Trazia artigos imensos que João só lia quais eram os títulos. Se aprofundasse a leitura cansava e já parava de ler.

De jeito algum haveria de ler aquele bando de comunistas safados que defendiam Lula, o ladrão. Além do que bastava ler os títulos pra saber do que se tratava. Pra que ler aquele monte de letras? Só os petistas não viam o mequetrefe que defendiam.

O que mais incomodava a João é que ele adorava José. Quando se conheceram, lembra que achara José um cara diferente da maioria, tão atencioso, gentil, sabia ouvir e falar na hora exata e tinha um grande senso de humor, suas observações eram brilhantes. A melhor companhia para vôos longos. João e José se divertiam tanto juntos que chegaram a dividir um apartamento em Campinas por alguns meses.

A namorada de João tinha ciúmes de José porque João falava demais do amigo, qualquer coisa era pretexto para o assunto se tornar mais uma incrível façanha de José. Chegou ao ponto dela lhe dizer que João fazia sexo com ela, mas a quem ele realmente amava era a José. João ficou furioso com estas observações da namorada e foi por um triz que não terminaram.

Foram tempos muito felizes, mas agora tudo tinha sido destruído pelo PT. O PT é quem tinha criado o ódio de classes e o racismo. Nunca houve racismo no Brasil. Os petistas eram monstruosos em tornar um povo tão gentil em pessoas tão horríveis. E o PT é quem havia transformado seu melhor amigo em pior inimigo. Os petistas eram comunistas, bolivarianos, ladrões. Todo petista é criminoso, João pensava. Só não entendia como José, o cara mais honesto que ele conhecia, o mais generoso, havia se tornado justo um petista. Lastimava, mas nunca seria amigo de um sinistro comunista.

Como é que ele João seria o copiloto da nave em que José seria piloto nestas condições? Ele poderia desmarcar o voo, conseguir um atestado médico. Agora mesmo, já havia vomitado. Quem sabe não estaria mesmo doente? Será que vômito poderia ser uma zika? Mas ele pensava que podia fazer José desistir desta bobagem toda de politica, esta coisa horrível que separa pessoas e de nada serve. Quem sabe uma última conversa? Prometia a si mesmo que desta vez não perderia a cabeça. Da última os dois foram apartados por pessoas na rua. Mas desta vez seria diferente. Ele não iria sequer aumentar o tom de voz. Falaria o óbvio: Lula tem um sítio em Atibaia com o dinheiro público, é ladrão e você José é o meu melhor amigo, o mais honesto de todos não pode ser um petista, pronto não diria mais nada. Até a palavra petista lhe dava nojo. Saiu correndo pra vomitar.

Os dias passavam como se fossem segundos. Finalmente era o dia do vôo. Mil vezes pensara em desistir, mas não era homem de fugir. Quando se encontraram José lhe desejou bom dia e foi com muita dificuldade que respondeu. No caminho, João deixou cair seu quepe por puro nervosismo. José o apanhou do chão e João mal conseguiu dizer “obrigado”. Olhava para José e só conseguia pensar num Giff animado de coração vermelho pulsando na Linha do Tempo do colega. Malditos vermelhos. Iam destruir o país. Agora a imprensa internacional chamava o Impeachment de Golpe e até no Twitter da própria Globo a palavra golpe havia sido escrita e depois apagada. Algum jornalista comunista deve ter sido o responsável pelo erro. Mas o fato é que estes vermelhos malditos tinham destruído uma amizade de anos. Ah aquela vaca da Dilma. Não poderia perdoar nenhum deles. Terrorista safada.

Começaram a discussão quando preparavam a cabine. João começou a gritar sobre “o Brasil jamais será vermelho” e repetir as frases que polulam em toda a internet num fôlego só. No que João chamou Dilma de terrorista safada, José rebateu descrevendo sobre as diferenças entre guerrilha e terrorismo. Guerrilha, ele dizia com calma irritante, era quando um grupo combate um exército usando táticas de surpresa numa guerra assimétrica em que o guerrilheiro é o elo mais frágil que se contrapõe ao Exército do Estado. São razões políticas em que o guerrilheiro está em desvantagem em relação ao Exército ou a polícia. No mundo inteiro houve muitos guerrilheiros que foram perdoados e no Brasil uma grande parte da juventude que combatia à Ditadura havia se engajado na guerrilha, inclusive José Serra do PSDB que havia sido da facção chamada de AP, Ação Popular.

José se manteve argumentando. Terrorista é aquele que tem uma ação de terror onde quanto mais gente morrer, melhor. Não há termos de comparação entre uma ação onde se morrer alguém é por uma espécie de acidente colateral de outra em que o que acidente é quando não morre ninguém, o terrorismo. Por isso guerrilheiros são considerados presos políticos e muitas vezes perdoados e terroristas não.

Foi quando João falou que Dilma era uma ladra, que já havia assaltado bancos. José, mais uma vez com calma, calma esta que irritava profundamente a João, argumentou que ladrões ficam com o dinheiro em benefício próprio, coisa que não havia sido o caso de Dilma que o dinheiro que roubara era para uma ação visando o fim da Ditadura, nada ficara para si e sim para uso de seus companheiros que assim podiam fugir da polícia, usar disfarces, financiar seus gastos comuns.

João não lembra se ligou ou não a GPU, a Ground Power Unit que era a fonte externa de energia para não haver descarregamento de bateria da aeronave. Lembra que tentou ir para cima de José, tão calmo, tão enervante, tão bonito para dar-lhe um soco na cara e este conseguiu afastá-lo num repelão e prosseguindo nos procedimentos protocolares, testando os sistemas e botões da cabine, configurando pra decolagem o avião.

João pelo menos conseguiu fazer a inspeção visual de rotina que era a parte que lhe cabia. Pediu para sair um instante e viu que o avião estava cheio e que algumas celebridades como Ana Maria Braga e Jair Bolsonnaro estavam entre os passageiros que iriam de Porto Alegre para Manaus. Ana Maria Braga estava indo para um encontro de chefs donas de casa e o Bolsonaro estava indo para lá para o encontro de jovens de seu partido, o Partido Social Cristão. Foi por um acaso que João sabia destas coisas porque havia folheado a revista Caras nesta semana quando foi cortar o cabelo. Ouviu um rápido diálogo entre os dois:
- Pois é, Ana, estou indo pra Manaus pra convencer os jovens a entrarem para a política e assim restaurarem a Ditadura.
- Ah, Eu não quero nada com política Bolsonaro. Política é muito chato. Meu negócio é ensinar às senhoras a cozinharem bons pratos e assim segurarem seus maridos pela boca.
- Muito importante o seu trabalho e acho que está colocando as mulheres no lugar certo. Já chega esta Letícia Sabatella toda bonitona incitando o pessoal a defender o governo.



João voltou se sentindo um pouco melhor para a cabine. Foi liberado o embarque. João pensou nos olhos cor de mel de José e mais uma vez sentiu que suas entranhas se contorciam de ódio. Determinado a fazer seu colega capitular destas ideias marxistas, resolveu jogar sua última cartada. Falou que a Russia iria invadir o Brasil com a ajuda das FARCS da Venezuela e que José se arrependeria de sua confiança cega em pessoas inescrupulosas que só queriam o poder. José estava preparando o computador e João cada vez mais ansioso agarrava suas mãos. Mesmo assim, na hora de decolar, José falou “Positive Rate” e ele João respondeu “Gear Up” mas o que desejava de verdade era apertar aquele belo pescoço forte de José até ele não ter mais uma única palavra mentirosa para dizer.

Aquele seria um voo longo com uma conexão em São Paulo. João estava vermelho e o tempo inteiro repetia para José que ele não teria como escapar dos russos que obrigariam sua mãe a dividir seu bom apartamento com os mendigos de rua. José olhou para ele e disse que aquele não era um bom momento para discussões, que tinham a responsabilidade de levar todas aquelas pessoas em segurança até seu destino final. João rebateu que ele só estava dizendo isso porque não tinha mais argumentos.

José riu. Primeiro argumento: é falso que no comunismo todos serão obrigados a dividir suas propriedades assim. Não há lugar algum aonde Marx tenha dito nada semelhante e não foi assim que ocorreu em nenhum regime comunista. Segundo: a União Soviética acabou há muitas décadas atrás, a Rússia não tem nenhum interesse em dominar nenhum lugar do mundo, já basta a Rússia cuidar de seu povo e de suas fronteiras como os demais países do mundo. Terceiro: Hugo Chavez já morreu e as FARCS são da Colombia e um presidente de direita negociou com as guerrilhas colombianas um acordo de paz com a ajude de Cuba e os guerrilheiros estão prestes a depor suas armas e entrar para a política.

João com os olhos rútilos encarava sem piscar José, sua boca carnuda, seus lábios avermelhados- será que ele foi à praia?- sentiu que estava excitado sexualmente e isso o irritou mais ainda- como pode ser estar sentindo isso por um outro homem, se perguntava e não gostava de estar assim, sentia-se frágil, nu, desmascarado e num súbito impulso voou no pescoço do companheiro.

A luta durou apenas alguns minutos. Passageiros em polvorosa se perguntavam o que era aquilo que estava acontecendo na cabine dos pilotos. Estado Islâmico? Não, não podia ser. Só ouviam baques e gritos abafados. Os minutos foram suficientes para que o momento de aterrisagem em São Paulo se aproximasse e nenhum dos dois desse conta do fato. Conseguiram se separar e cair em si a tempo de cuidarem para que o avião pousasse. Prepararam o trem de pouso, mas alguma pane estava ocorrendo e o trem de pouso não descia.

Após alguns instantes de suspense, o trem de pouso voltou a dar sinais de vida. Entretanto, o piloto automático não fora corretamente programado porque nenhum dos dois conseguira efetivar corretamente os procedimentos padrão da aeronave.

No dia seguinte a manchete dos jornais: Avião Cai Sobre Condomínio de classe alta no bairro de Jardins (São Paulo). Não há sobreviventes. A Aeronáutica investiga as causas do acidente que matou todos os passageiros, tripulação além de fazer dezenas de vítimas em terra.










quarta-feira, 30 de março de 2016

na vertigem

sou vermelha lilás laranja verde vinho amarela
sou todas as cores
sou ninguém
sou todos nós
sozinha pouco posso
quando vamos juntos
posso bem mais
a ciranda fica mais bonita
quer aprender a dançar?
no caminho a gente te ensina
passo a passo no espaço
na vertigem na segurança
de quem nada tem a perder

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

um bom conselho

Em outros tempos, doenças sexualmente transmissíveis eram associadas a gente com vida promíscua. Depois, aos homossexuais. Agora até a zica pode ser transmitida sexualmente, e zica vem do mosquito, como se constatou. Mas mesmo antes, este negócio de gente de vida promíscua ou só homossexuais passando DSTs já era falso. Há uns 20 anos atrás, tive uma amiga querida que era lésbica, bastante recatada, transou com um único cara, heterossexual, um gringo, num episódio único, pegou AIDS e morreu alguns anos depois- naquele tempo não havia o coquetel. Tenho certeza que o caso dela não foi único. Basta ver como as DSTs vieram se desenvolvendo até o ponto em que hoje estamos.


As doenças sexualmente transmissíveis hoje são epidemias. Um fenômeno mundial. Vírus e bactérias não escolhem sexo, raça, religião, nacionalidade, se é certinho ou se é da pá virada, como se dizia antigamente. Na real, os julgamentos morais nunca são adequados para se pensar racionalmente as Doenças Sexualmente Transmissíveis, cada vez menos fazem sentido. Sim, doenças sexualmente transmissíveis podem acontecer com aquele cara super boa gente, completamente não promíscuo, apenas fã de sexo e descuidado com o uso da camisinha. Também podem acontecer com aquela menina linda, ainda inexperiente sexualmente, que apenas não soube se impor ao cara que com ela transou um dia e lhe passou o vírus- ou bactéria. Podem acontecer com a mãe de família, fiel, que pega do marido que nem é um cara promíscuo mas um dia transou com alguém que era portador da doença. Tudo pode.


O uso da camisinha hoje para a prática do sexo é obrigatório. Não importa se já namora há um ano, seis meses ou seis anos. Ninguém pode ficar fiscalizando a vida sexual do outro noite e dia. Na prática isto quer dizer que seu(sua) parceiro(a) sempre poderá um belo dia sair com outras pessoas. Ou ainda seu(sua) parceiro(a) pode já estar infectado há muito tempo e estar assintomático. O tempo de incubação de algumas DSTs é imenso. Então a única coisa sensata a ser feita é usar sempre camisinha, não importa com quem nem quando. Ser fiscal da vida sexual alheia é uma profissão inglória, boba, tosca. Cada um tem de ser responsável pela sua própria vida sexual. Sendo assim, cada um, homem ou mulher, tem de exigir que o parceiro use camisinha. Ou não faça sexo. Ponto parágrafo. Único jeito de não se infectar.


Se alguém não topar usar camisinha diante de seu pedido, é mal sinal. Sinal que esta relação tende a manipulação ou que aquela pessoa pretende dominar todas as suas ações daqui pra frente. Ninguém precisa de alguém que quer nos dominar numa relação. Dominação pode ser divertido sexualmente, mas na prática é uma chatice. Só dá briga.


Para nós mulheres, em termos de prazer, o uso de camisinha é indiferente. Não sentimos mais prazer se sentimos o sêmen de um homem quando este ejacula. Isto é lenda urbana de que mulher tem prazer em sentir sêmen. Não sentimos nenhum prazer desta forma. O sêmen só nos interessa se desejarmos ficar grávidas. Fim do interesse no assunto. Não tem papo de tesão com isto não. Que fique claro.


Não sou homem. Os do meu tempo diziam uma coisa sobre o assunto que talvez seja a razão de tantos caras se recusarem a usar camisinha: de que “usar camisinha é como chupar bala com papel”. O que sei é que há homens que têm dificuldades em manter a ereção com o uso da camisinha. Sugiro fortemente aos homens com estes problemas que procurem psicoterapia porque não há nada que prove que camisinha cause disfunções eréteis. Sendo assim, é a cabeça que faz o estrago, não a camisinha.


Procurar ajuda quando se precisa é sinal de maturidade. Trazer problemas pra sua vida como é o caso de se pegar uma DST por uma questão de origem psíquica pra mim faz pouco sentido. As DSTs hoje têm tratamento, ninguém morre por causa delas, e, por outro lado, as psicoterapias são hoje evoluídas o suficiente pra dar conta de homens com problemas com o uso de camisinhas. Tudo tem solução. Basta querer e se empenhar no assunto.


Bom Carnaval às meninas e aos meninos, aos homens e às mulheres. E que o carnaval seja sempre uma lembrança alegre em suas vidas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Que Viva Eiseinstein e que Viva Greenaway

então fui assistir o Que Viva Eisenstein do Peter Greenaway. Já tinha visto do Eisenstein os clássicos Encouraçado Potemkin e Outubro. Do Greenaway o Drowning by Numbers (Afogado em Números), O Cozinheiro, O Ladrão,Sua Mulher e o Amante e O Livro de Cabeceira.

Como costumo fazer, dou uma estudada ou antes ou depois no assunto que vou ver- quando os filmes tratam de histórias reais históricas propriamente. No caso, era o México e aquela época em que Eisenstein foi filmar o Que Viva Mexico, o próprio Eiseinstein e o cinema feito na Russia de Eisenstein.

Antes de mais nada, a história do México é muito impressionante, me deu vontade de conhecer o México. O México é muito mais antigo até que o Egito e sua história inclui uma revolução. Me chama a atenção como foi rico o México e como tornou-se pobre, como sua cultura é múltipla, enfim, acho que só vou conseguir dar conta do México se eu for ao Mexico mesmo. Vale dizer que o nome Mexico veio da civilização dos mexicas que vieram após os olmecas, os Teotihuacam e Maias. Mas ainda me falta roupa pra ir nesta festa chamada História do México. Mas que deu gostinho de quero mais, deu.

Sobre o Eiseinstein, não vou falar o que o Google pode esclacer. Como disse o próprio personagem Eisenstein no filme do Greenaway, ele não gostava da realidade/realidade. Quem gostava de Kino Pravda (cinema verdade) era seu colega Dziga Vertov. Eisenstein era um cara delirante, filmava as histórias reais mas com toques de fantasia absolutos e por isso mesmo as cenas de seus filmes se mantém na memória como sonhos ou pesadelos, mais como pesadelos. Se fosse tudo só vindo do real/real é provável que já tivesse sido esquecido.

Antes de trabalhar com cinema, Eisenstein trabalhou com teatro e sua formação incluiu arquitetura e engenharia, razão pela qual seus desenhos eram tão bons e sua linguagem realmente teatral.

O personagem do filme é absolutamente detonador de toda a fantasia stalinista de como deveria ser um cineasta judeu, comunista. A bandeirinha no traseiro para comemorar a revolução e a perda da virgindade de Eisenstein é o cúmulo da iconoclastia de Greenaway, por quem nutro profunda simpatia- agora mais do que nunca. Minha crítica ao filme é o excesso de HDR na fotografia, mas provavelmente isto só quem é fotógrafo vai ver. Eu achei over. Não eram assim os filmes do Greenaway que vi antes, embora Greenaway seja sempre um cara exagerado. Só que desta vez, como rolavam muitas cenas ao ar livre, acho que ele se perdeu no HDR. Nada contra o HDR, eu também uso, mas não uso o tempo todo e acho que Greenaway não precisaria de tanto HDR nas fotos ao ar livre. Outra coisa que ele exagerou foi num recurso que não sei que nome tem, mas tem sido muito usado, nós mesmos usamos para filmar/fotografar o lugar de nossa exposição de 2015, o giro panorâmico em 360 graus. Toda hora tem giro panorâmico de 360 graus no filme. Outra coisa que poderia ter sido mais sutil.

Mas é um belo filme. Vale a ida ao cinema. Comovente personagem, história triste e bonita. Tem toques engraçados, mas eu não chamaria de comédia nem a pau.

#quevivaeiseinstein #petergreeaway #quevivamexico

domingo, 17 de janeiro de 2016

Entre o Tigre e o Eufrates Num Jardim de Absurdos

O tigre se aproxima lentamente
Come uma rosa duas rosas três
Sacia-se de sonhos
De suas listras desenham-se outros jardins
Por onde caminho sendo eu mesma
Ervas árvores cercas e montes
Há um arame farpado em meu corpo
E tudo está a venda
Em papel celofane cubro toda a paisagem
O tigre nela não se vê
Fugiu
Como fugiram os pássaros
E depois os homens
Ficam os cupins
Até que nem eles
O fogo canta num incêndio
Sacrifício aos deuses
Desnecessário
Se apenas víssemos alguma coisa diante de nosso nariz
Só que não
Nada vemos
Queremos tudo
Enquanto as paredes se enchem de manchas
E nossas mentes de fotografias
Tudo é passado
Até mesmo o futuro
Vivemos numa encruzilhada
Entre o Atlântico e o Pacífico
Somos tudo desde o início
Sendo assim
Não sobra nada
Não há espaço
Apenas vertigem
E cansaço