terça-feira, 15 de dezembro de 2015

a caretice é o horror

a caretice me assusta mais que a crise econômica. Explico: falta de dinheiro se contorna. Aonde comem 2, comem 3, sempre tem alguém que pode dar uma força e a união de vários duros pode resultar em atos heróicos e criativos que dão jeito na coisa.

Fui dura em tempos duríssimos e sobrevivi perfeitamente bem sempre. Não é bom ficar sem dinheiro, mas com imaginação e luta se resolve. Já a caretice....

A caretice é um poço sem fundo. A caretice é filhote do medo e do ódio. A caretice não te dá descanso. A caretice te persegue se você não é careta. A caretice fica ali, na patrulha, na cobrança. Cada vez que você sorri, a caretice faz cara feia. Se a caretice é de classe, vai te julgar por você usar um sapato velho. Se a caretice é de raça, vai rir de você com cabelo crespo e preto.

Há um sem número de caretices e a caretice sempre vai dar um jeito de te constranger seja por uma ou outra razão.
Estava feliz achando que o Brasil estava desencaretando. Vi muito contente as meninas feministas da Marcha das Vadias despontarem ferozes. Vi as Marchas Pela Descriminalização da Maconha com coisas divertidas e criativas. Muitas performances, muitos novos artistas, muitos movimentos liberadores. A palavra empoderamento- de se tornar poderoso- ficando na moda. A noção de que não existe esta de discursos universais e sim um "do meu lugar de fala" substituindo o arrumadinho que resolve que fala representando todo mundo. O surgimento de uns mil tipos de personas sexuais, o debate queer, uma montanha de coisas estranhas e provocadoras.

Só que estou vendo tudo isso ameaçado. Tem gente se orgulhando de ser facista. Tem gente se orgulhando de ser preconceituoso. O país parece mergulhar de novo num tempo que eu preferia ver pra trás.

Não temo por mim. Com 56 anos sem metáforas e papinhos de vida-pra-sempre, tenho mais tempo pra trás do que pra frente, mesmo debaixo da Ditadura fui livre, fiz passeata pelada no Movimento de Arte Pornô, aprontei tudo que tive direito mesmo correndo riscos. Não, por mim está tudo ok. Se os caretas vierem de vez, vou manter os cabelos coloridos e grisalhos e me comportarei como sempre: abrirei a boca e falarei palavrão aos montes, dançarei enquanto o corpo permitir, farei sexo, falarei de sexo, escaparei ao controle porque sou especialista nisto, vou continuar cantando, escrevendo, fotografando, atendendo quem me procurar, cuidando de quem precisar ser cuidado, fazendo o meu melhor para assistir aos desassistidos. Sem problemas.

Confesso minha caretice de mãe, temo por meu filho, pelos amigos dele, pelos que nem são amigos dele, por toda esta geração que será perseguida, já está sendo, de certa forma. Sei que eles são cuca fresca, muito mais tranquilos do que o que eu fui, do que minha geração foi. Mesmo assim, a monstruosidade da caretice me assombra. Porque antigamente, a gente tinha pra onde fugir. Agora parece que acabou. Acho realmente assustador isso do mundo estar todo ele encaretando e o Brasil ir de vento em popa para trás com todo o resto.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

doentes

talvez o glúten de hoje em dia não seja mais o glúten que reunia em torno da mesa as famílias, nem aquele que Jesus dizia ser a sua carne. O glúten hoje é um transgênico, deve dar zebra, deve dar câncer, mas o quê não dá câncer?

Me parece estranho que um alimento possa ser responsabilizado por tantos males que na real deveriam ser atribuídos a coisas muito mais fáceis de se perceber como por exemplo andarmos de automóvel o tempo todo, não gastarmos as calorias que consumimos, comermos mais do que precisamos, vivermos em pequenas caixas, em multidões cada vez maiores mas sermos paradoxalmente cada vez mais solitários, respirarmos monóxido de carbono, vivermos entre coisas cada vez mais só feitas para serem úteis em vez de belas e as coisas belas cada vez mais inacessíveis.

O que dá câncer talvez um dia descubramos não é o glúten, nem os laticínios, nem a carne, ou talvez a influência deles seja vastamente menor que sermos passivos, alienados, isolados, incapazes de nos entregarmos à uma luta, desejando frutos sem os termos plantado, nos sentirmos invejosos de vidas que se víssemos de perto perceberíamos tão sem significado quanto a nossa e, principalmente,sermos cada vez mais incapazes de amar, de cuidar, de sermos solidários.
Em resumo: o que talvez nos provoque câncer seja uma imensa, colossal, estupenda e sem sentido algum, preguiça. Muita preguiça. Porque amar dá trabalho, ser bem sucedido dá trabalho. Fazer as coisas bem feitas, dá trabalho. Ganhar consciência de si mesmo dá trabalho. Dá trabalho viajar, dá trabalho arrumar a mala, a casa, dá trabalho sair da zona de conforto. Dá trabalho conservar amizades. Dá trabalho telefonar para os amigos que nunca achamos que nos telefonam o suficiente. Dá trabalho trabalhar.

Somos escravos de nossas ânsias, de nossas vontades cada vez mais urgentes e de nossos medos, tão indefinidos, mas tão insidiosos. Reclamamos do barulho dos vizinhos e já nem ouvimos mais o intenso barulho do tráfego. Ou, se não há barulho de tráfego, de nossa mente compulsiva e confusa. Colocamos nos nossos inimigos sinais desumanizantes quando em verdade até mesmo o demônio foi um dia o mensageiro dos deuses. Vemos ao horror como cor de rosa e ao cor de rosa como horror.

A pergunta é: como não adoecer se somos todos doentes?