quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Felicidade Que Coisa Mais Esquisita




Que dia esquisito... Não precisou que o céu estivesse verde. Não estava. Estava nublado. O passarinho que mora no meu ar-condicionado, chatinho ele, me acordou como sempre fazendo aquilo que ele sabe fazer muito direitinho: cantar.

Acordei. Ainda doendo o ombro, dei um jeito anteontem. Tomei banho. Passei a limpo umas coisas. Saí atrasada, como sempre, talvez um pouco mais atrasada que o habitual, para minha psicoterapia.

Pedi pra ir pela Belizário, pegar a Mundo Novo, só pra ter aquele gostinho de Pão de Açúcar, nossa belezura. Trânsito fluindo, mesmo em Botafogo. Cheguei, roubei um cream-cracker, pensei em pegar um cafezinho, achei abuso, fui logo subindo a escada. Tirei os sapatos. Entrei. Sentei entre as almofadas.

Nunca penso antes de chegar à sessão sobre o que irei falar. Deixo que a coisa role bem no estilo associação livre. Coisa que sempre fiz, muito antes de ler Freud. Repassei a semana na cabeça.

Caraca aconteceram coisas, passaram e eis que simplesmente não tinha um único problema pra contar pra minha psicanalista.

Que direito tenho eu de estar aqui, confortável entre as almofadas, tomando a hora da minha terapeuta, sem um único probleminha besta pra contar?

Apelei. Falei da recuperação no 3º trimestre do meu filho. Mas foi apelação, reconheço. Pra ele não está sendo um problema. Então, eu inventei um problema pra me sentir menos mal de estar ocupando o lugar dos infelizes, desesperados, angustiados que bate naquele sagrado recinto todo instante. Falei da recuperação e fiquei tentando me lembrar de alguma coisa bem cabeluda pra contar pra psi. Nada. Vasta e inenarrável falta de problemática.

Logicamente, com a minha infinita capacidade de encher espaços com lingüiças metafísicas, acabei arrumando assunto pra aqueles 50 minutos. Mas se tivesse ficado calada, teria dado mais ou menos no mesmo. O único e derradeiro fato sobre este dia, esta semana, quiçá este mês, é que estou inapelavelmente feliz.

Todas as coisas que sempre sonhei, fiz. Parece estranho, mas é verdade. Só me dei conta hoje. Queria fazer discos, fiz CDs. 3. Queria escrever livros, escrevi, 3 também, partindo pro 4. Queria ser famosa, fiquei, tá lá no Google, quem não acredita, experimente digitar Cynthia Dorneles pra ver se não aparece. Aparece. Montes de páginas. Queria ter filho, tive. Um. Queria ter cachorro, tive. Um. Queria morar na General Glicério, moro. Fiz tudo.

E agora faço o quê? To jovem demais pra bater as botas. Tenho de inventar algum novo sonho? Reclamar de defeitos minimalistas que a vida não me trouxe estilo jamais fui à Jamaica? Preparar-me pra desencarnar? Tentar alcançar o Nirvana em sete semanas? Emagrecer 10 quilos até dezembro? Qual meta será suficientemente impossível pra me garantir ao menos uns três anos de psicanálise?

Ah, como é gostoso andar pelas ruas poluídas do Rio de Janeiro quando se sabe que há dinheiro na carteira pra tomar um taxi, se tiver vontade. Ah, como é gostoso dormir sozinha quando se sabe que arrumar companhia é só uma questão de telefonar. Ah, como é gostoso comer só um mamãozinho quando se sabe que a geladeira está cheia. Até a dorzinha no ombro não é lá grandes coisas. Dá um sabor à quinta feira.

Hoje vou ouvir samba na Urca. Aos pés do nosso cartão postal, em excelente companhia. Sinceramente, se reclamar? É porque sou uma chata. Chata redonda, a pior espécie de chatos. Abaixo às calcinhas e viva o beijo na boca. A vida é mais que bela. A vida é surpreendente. Reclamar só quando houver motivos. Este é meu lema. Sou louca? De pedra. Vontade das pedras de cair.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Por Que Não?


Por que não aparece um político tendo como plataforma celebrar todos os dias? Por que não é decretado que se deve, a partir de hoje, abraçar ao vizinho, ajudar os idosos, brincar com as crianças, dar alento aos doentes? Por que não se torna uma lei federal o direito ao pão e a alegria a cada dia?

Quero viver num país onde ninguém seja tão pobre a ponto de não ter dignidade ou tão rico a ponto de não ter fome de amor. Quero um país onde a escola, além de ensinar as matérias úteis à vida prática, ensine a gentileza, o cuidado de si e a perfeita noção de que somos parte de um todo e que ninguém será feliz enquanto todos não puderem ser felizes.

De que me adianta ler tantos livros se há quem nem saiba ler? De que me adianta ter tanta coisa se há quem abandonado a própria sorte, sem saúde nem esperança, não tenha nem um nada para se agarrar no momento de dor?

É preciso, urgentemente, que possamos acreditar que cada um faz diferença e que juntos podemos construir um mundo melhor. É preciso tomar as rédeas da própria vida e das próprias responsabilidades. Não desanimar frente aos obstáculos, mas principalmente, preferir agir a reclamar, preferir dar soluções a criticar, e preferir criticar a se acomodar.

Precisamos de uma injeção de coragem, mas principalmente, precisamos de uma injeção de civilidade e consciência de que hoje, somos muitos milhões de homens e mulheres, vivendo excessivamente próximos uns dos outros- de uma forma assim, tão extrema de proximidade- que acabamos por criar distâncias intransponíveis. Entre meu credo e o seu. Entre minhas coisas e as suas. Entre minha gente e a sua.

Precisamos nos unir. Não nos juntar. Juntos, já estamos. Só falta termos a consciência de que eis aí, um fato definitivo: vivemos amontoados, uns sobre as cabeças e os corpos dos outros.

Vivemos amontoados e sem termos mais a menor idéia de como funcionam os motores que nos levam para cima e para baixo ou como podemos cuidar de nós, sem precisarmos entregar nossa vida aos especialistas disso e daquilo.

Quero viver num lugar onde cada um busque saber mais e melhor sobre si, sobre o mundo e ninguém faça de conta que não é consigo esse papo de ter responsabilidade social.

Todas as fronteiras desaparecem quando surge o caos. É o Estado que é chamado a intervir quando o mercado enlouquece e quebra. Sabendo disso, é hora de nos tornarmos mais humanos e mais amorosos. Amor, este sentimento que cria pontes e faz novos entendimentos.

domingo, 19 de outubro de 2008

Definições Indefinidas de Sexo, Paixão e Amor num domingo de chuva


Sexo: é aquele negócio que temos entre as pernas. Há os pênis e as vaginas, popularmente conhecidos como pintos e xotas. Estes dois (pinto+xota) ao se encontrarem em alguns dias específicos do mês costumam resultar em lindos bebezinhos, que choram muito até uns 3 anos de idade. O Sr.Pinto funciona na base da estimulação visual+fricção científica. A Sra.Xota é encaracolada, invariavelmente imprevisível e pode vir no modelo 1.0 ou luxo- o luxo tem orgasmos múltiplos, que são ocasionados por variantes entre linguadas nos grilos (cessam todos os problemas femininos dessa forma, é garantido ou seu $ de volta), dedilhadas no violão e festinhas no parque.

Paixão: sentimento incandescente cuja origem ninguém sabe exatamente qual é. Pode ser provocado pela beleza física, mas igualmente pelo brilho da inteligência ou humor. Origem da palavra vem de pathos que significa doença. A paixão nos deixa obcecados, verdadeiros Ideiafix, o cachorrinho do Asterix. A paixão é o tesão elevado a milionésima potência. Mas a paixão também inspira lindas poesias, mudanças de atitude e muitas outras coisas cujo resultado é extremamente positivo. Por isso mesmo, apesar de ser escravizante e obsedante, a paixão é desejável. Porém, seja como for, paixão dá e passa.


Amor: sentimento delicado, afetuoso, enternecido, que inclui tesão e vontade de criar e viver coisas juntos. É um sentimento que constrói, que traz bem estar, alegria, tranquilidade. Apesar de forte, não deixa ninguém com cara de Ideixafix e podemos fazer outras coisas na vida além de amar nossos amados. O amor é primo em primeiro grau da amizade, do respeito, da solidariedade, da cumplicidade e é fruto do conhecimento: quanto mais se conhece alguém, se há amor, mais se ama este alguém. Amor pode mudar em suas formas. Ora quente, tesudo, ora morninho, gostosinho, ora frio e distante- seja como for, o amor não passa. Você pode largar o parceiro(a), mas se o(a) amar , amará para todo o sempre, ou melhor, enquanto viver, pois o amor é um sentimento dos vivos para os vivos.


A paixão pode tornar infeliz. Mas o amor? Jamais. O amor sempre deseja o bem estar e a felicidade do outro, seja lá como for, comigo ou sem migo. This is love. All you need is love.


É o amor, não a paixão quem remove montanhas.


nos tempos modernos
Onde as pessoas nem sequer se dão tempo para desejarem profundamente nada, a tendência é estes sentimentos (amor e paixão) desaparecerem para deixarem quando muito o objetivo sexo. Na contemporaneidade, não se deseja. Se tem impulsos. Trepa-se com o outro como quem compra uma roupinha no shopping. Como tanto a paixão quanto o amor precisam de um mínimo de tempo para terem sua gestação, o futuro é só sexo puro.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Professor de Italiano e a Dança


Outro dia conheci o homem da minha vida. Hoje também conheci o homem da minha vida. Acontece que tenho muitas vidas e, portanto, há muitos homens que seriam os homens da minha vida.

Aquele eu conheci numa loja de sucos. Tinha um rosto lindo. Era professor de italiano. Como descobri? Conversando com ele. E se ele for casado? Ele foi o homem da minha vida quando era solteiro. Mas como pode ter sido o homem da minha vida se eu ainda nem o conhecia? Não importa. Ele era o homem daquele trecho da minha vida, que como tudo o mais, está e estará sempre inacabado.

Hoje conheci outro. Era alto, forte, parecia protetor. Dancei com ele. Nós nos abraçamos, e em cinco minutos tínhamos uma intimidade de muitos anos. Foi assim que descobri que ele era o homem da minha vida- de hoje.

Minha vida de hoje foi assim: começou num dia de sol e terminou com música nos braços de um homem a quem não beijei nem namorei, mas sei. Sei de cor os dedos, a textura da pele, a temperatura da mão direita deste homem. Nada sei sobre a esquerda. Mas a mão esquerda deste homem já faz parte de uma vida que não é a minha. Sei que este homem, com quem tive um momento pleno, era o homem da minha vida de hoje.

Assim adormeci e sonhei árvores e serpentes.

Como sei que sonharei árvores e serpentes se ainda não dormi? Porque meu sonho é meu desejo. E meu desejo é pela frondosa árvore onde aos seus pés, depositarei uma maçã madura e fresca.

Amanhã será um dia dourado.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Maledetto Il Giorno Che T´ho Incontrato


Camilla, Bibila para os íntimos, era uma mulher muito alegre, mas infinitamente solitária. Tinha um rosto bonito, uma inteligência vivaz, não dependia de ninguém financeiramente, mas era gordinha e extremamente ingênua.

Camilla era descendente de uma família de italianos sanguíneos e contava-se que seu bisavô tinha cinco famílias de cinco mulheres- ninguém sabia quem eram estas mulheres nem quem seriam estes filhos, mas eram dadas como fato estas cinco famílias. Também era fato indiscutível que o fabuloso Senhor Giuseppe, hoje um pacato e redondo avozinho na juventude cometera um assassinato na Itália e que veio para o Brasil fugido.

Camilla era uma moça até bastante esperta, pois com o pouco recurso que tinha, amealhara um patrimônio razoável que a deixava com o tempo totalmente livre. Tempo livre e muito romantismo era a perdição de Bibila, diziam os amigos preocupados com a sanidade mental da moça que no momento encontrava-se envolvida de corpo e alma numa infinita [i]foda retórica[/i] constituída por uma relação com um homem que ninguém conhecia.

Para acompanhar o trajeto daquela neta meio desmiolada, Giuseppe fizera um curso de computadores para idosos e comprara um para uso próprio. Arrependera-se, pois Camilla agora quando ia visitá-lo mal comia e sentava-se na frente da máquina por horas e horas a fio.

Ás vezes vinha de lá com olhos vermelhos e os irmãos e as tias percebiam que a alegre Bibila estivera chorando. A mãe de Camilla estava sempre ocupada com os netos, filhos da irmã e do irmão de Camilla, já casados, separados e recasados. A avó, a docíssima Senhora Paloma falecera no ano retrasado. Giuseppe sentia-se responsável por aquela alminha eternamente desgarrada do corpo de sua neta, que já nem mais mocinha era.

- Estou apaixonada, vovô.
- Que está apaixonada já se vê porque todas as paixões costumam ter como resultado este passamento das almas em relação aos seus corpos. Já fui apaixonado por sua avó, pelo meu país e pelo meu trabalho. Dava no mesmo. Agora, quem é este homem que lhe tira o sossego, menina?
- Não sou mais menina, já tenho 39 anos. Ele é o homem mais fabuloso do mundo, o mais inteligente, o mais gentil e o principal: ele me ama, vovô.

O avô fez silêncio por um tempo. Como era parecida com Paloma esta sua neta. O mesmo ar sonhador, o mesmo sorriso, o mesmo cabelo cacheado e aquela mesma ingenuidade, que muitas vezes era confundida com estupidez. Não era estupidez, embora a própria Paloma dissesse de si que era uma tonta, uma parva, uma pateta.

- Quem é este homem, detentor de tantas qualidades? O que faz ele?
- Não sei ao certo. Ele faz um monte de coisas. Dá consultorias de economia, suporte de computadores e já fez cinema nos anos 80.
- Como ele consegue fazer tantas coisas... Deve ser mesmo um homem formidável. Qual o sobrenome dele?

Ernesto era um homem de cinqüenta e poucos anos, mas parecia sessenta. Barriga proeminente, pele cinzenta, olheiras, lábios carnudos- talvez tenha sido algum dia um homem bonito, mas sua beleza foi soterrada por uma vida obviamente sedentária. Mas não era a aparência física de Ernesto o seu pior defeito.

Ernesto tinha uma visão de si mesmo particular: apesar de ser um pobre diabo, via-se como um homem muito bem sucedido. Apesar de feio, via-se como lindo. E apesar de apenas inteligente, achava-se genial. Acreditava tanto nisso que fazia a todos crerem na lenda que ele criava, aproximando-se de muitas mulheres e seduzindo-as e aos homens, adulando.

Mentia de forma a jamais ser flagrado e mentia muito. Mentia de tal forma que todos a sua volta, até ele próprio, acreditavam nas mentiras que contava. Estudara leis, política e estratégia. Era um hábil sobrevivente das armadilhas de uma selva que ele próprio arranjava para viver.

Casado pela segunda vez, um filho já grande do primeiro casamento e filhos pequenos deste segundo. Traiu suas mulheres, mentia ser solteiro para as amantes e quando flagrado em alguma, mentia a todas saindo sempre ileso: mulheres antes de tudo são mães e protegiam-no, como mães protegem seus filhos, como mulheres fecham os olhos aos erros de seus homens.

Sua desculpa vinha na ponta da língua: esta mulher me persegue, é uma louca, tenho nojo dela. E dava certo, até porque o tipo de mulher que ele abordava era sempre a Patinha Feia, a mulher mais insegura, mais rejeitável. Óbvio que se abordasse um avião, a desculpa não colaria. Mas, abordando as mais velhas ou as mais feias, eis que sempre dava certo.

Dizia-se solteiro e que queria amar, namorar, relações sérias.

Para conseguir driblar as pretendentes, sempre muitas, simplesmente criava uma série de obstáculos para que as relações chegassem a bom termo.

Era dado a estranhas zangas sem razão ou inexplicáveis acessos de uma peculiar paranóia que do mesmo jeito que vinha, sumia na hora que convinha. Sentia-se perseguido ou dava um jeito de se dizer vítima de fofocas terríveis que a pobre mulher da vez houvesse feito.

Não havia fofoca, não havia motivo pra fúria.

O que de fato havia era uma esposa e, por ser já casado, não poder casar com duas. Ou três. Ou quatro.

Ernesto era voraz. Se pudesse, casaria com todas para poder trair a todas.

Com Bibila não foi diferente. Ele a enlouquecia e sabia manejar muito bem todos os humores da moça. Como de costume, não avisou que era casado.

Camilla, muito naturalmente, ligava, mandava torpedos, procurava. E um dia, a esposa de Ernesto flagrou um destes torpedos e principiou uma verdadeira investigação sobre quem era esta mulher.

Camilla Brachetti um dia foi encontrada assassinada a tiros. Ninguém sabe quem foi. Ernesto continua por aí e o seu casamento vai bem, como sempre.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Incrível Sex Appeal das Paredes


Cenário: uma boate chamada Crepúsculo de Cubatão, toda preta, no posto 6 de Copacabana, exatamente no point mais quente da cidade no meio dos anos 80.

Uma Cynthia de meias arrastão rasgadas, brinquinho de rã pendurado na orelha, dança ao som de um grupo irlandês ainda desconhecido o U2 e Titãs em começo de carreira.

O Crepúsculo era massa e mesmo uma mulher com peitos como eu adorava fazer de conta uma androginia cem por cento inexistente. A boa era ser andrógino então éramos todos andróginos. Andávamos de preto, cortávamos os cabelos espetados e fomos provavelmente os inspiradores dos darks.

Havia esse costume: a gente ia dançar, mas ninguém dançava com ninguém. Todos dançavam com as paredes. Tive um verdadeiro caso de amor com a parede do canto esquerdo do Crepúsculo. Já sabia de cor todos os buraquinhos que ela tinha.

De tanto dançar com ela, a Dona Parede, um dia ela me lançou uma cantada. Uma cantada descarada, pior do que todas as cantadas que já levei ou dei. Ela sussurrou no meu ouvido “você é um mulherão, larga desses baitolinhas dos seus amiguinhos e chega mais, vem aqui, esfrega esse teu pernão e rasga de vez essa meia arrastão. Vem ser a Madonna da minha existência no filme que ela só fará no futuro, na cama com.”

Fiquei sem fôlego. A parede estava requebrando toda nua para mim. Reta como uma parede, ostentava suas exatidões de uma forma inegavelmente lasciva. A parede me cercava, pela frente e por trás, eu não tinha como escapar aquele abraço frio e cheirando a tinta e gesso.

A parede safada pegou no meu peito, sim, aquilo tinha sido uma pegada tipicamente paredal. Só tinha bebido cerveja, não tinha fumado, portanto, era inexplicável aquela estranha conformação retilínea levantando minha saia de couro preta.

Qual o sexo da parede? Desconfiei que era feminino porque ela era cheia de buracos. Mas como era dura feito um cara de tudo duro, poderia também ser um homem. A parede era sexual, basta dizer isso. E quando vi, estava sendo apalpada no lustre.

Gozei vendo o mundo de cabeça pra baixo. Desde então peguei o hábito de abraçar paredes e das paredes passei pras árvores e das árvores para o universo inteiro, animal, vegetal e mineral. Só quem me entende mesmo é Schoppenhauer que fala da vontade das coisas. Não contem pro meu namorado, mas ontem mesmo eu vi: a poltrona do cinema bem que deu uma encoxadinha em mim.

Frio Quente


Não sei o que me deu

se foi um frio

ou se me transformei num rio

sei que não consigo ver nada

que não me lembre sexo

tenho tesão em navios

porque são grandes

tenho tesão em pavios

porque são cônicos


Meu tesão senhores e senhoras

é crônico

Por favor me dêem uma atenção

ou uma chuva de picas

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Mulher Em Si bemol


Nas palavras me refugio como o sonhador vai para a ponte olhar os peixes, as aves, as montanhas e às árvores.

As palavras são o que me liga ao outro, mas o outro a quem me ligo é um sonho, o brilho do meu anel.

Quando escrevo sou uma mulher de uma substância entre o diamante e a nuvem. A mulher para qual fui destinada, mas que por desatino e no desalinho das linhas da minha vida, não realizo.

A parede de pedras. Tento colocar as letras numa outra ordem e nem por isso cai a parede de pedras. A parede de pedras me antecede. Com adjetivos ou sem, segue até sem substantivos. Hoje, uma livraria, ontem e amanhã, quem sabe? Queria ser esta parede e seguir sendo parede de pedra, mesmo que mudassem minhas letras de ordem ou me tirassem todos os verbos e adjetivos. Sendo mulher, qualquer desvio é sempre fatal. Uma mulher desviada ainda é um perigo na estrada onde passa o boi e a boiada.

Por acaso alguém já te contou que estou separada?

Separada do quê, indagas.

Separada dele.

Que ele?


O ele que me dá passaporte para ser quem sou.

Te paga as contas?

Não. Paga a vida com a própria vida. Chama-se amor. É dele que estou apartada. Ele mora perto de mim, mas algumas ruas muitas vezes se tornam infinitos quando os passos estão descalços.

Passo a vida totalmente nua, pés descalços. Perigo pegar uma gripe. É sempre perigoso viver quando a coragem nos vem depois do feito. Eis que é sempre assim: é preciso arriscar primeiro para se medir o tanto de ousadia que nos resta. Passo a vida em festa.