sábado, 15 de agosto de 2009

O Vizinho e seu Violino


Ouço um violoncelo. Pelo basculante de meu banheiro, chega o som. Não é um cd. É alguém tocando sozinho.

Conheço todos os meus vizinhos.

Quem será este que anima minha solidão com um som tão belo?

Será jovem, será velho? Será um homem ou uma mulher?

Certamente é um profissional. Se for um amador, tocando tão bem, é um poeta.

Ouvi sua voz neste instante. Ao terminar um dos trechos da música que tocava, falou para alguém “Então acabou”. Portanto, está mostrando para alguém. O que? Não sei. Deve ser para só uma pessoa, até porque até agora não ouvi nenhuma voz além da dele, o celista. Talvez seja sua amante. Ou por que ele estaria tocando de forma tão sentida?

Ela deve estar como eu: extática. Quase sem respirar para que som da respiração não atrapalhe.

As notas se sucedem. Uma cachoeira de sons. Uma buzina lá fora desafina a harmonia.

Lembro de um jovem amigo com quem conversei ontem. Ele está tocando violino há três anos.

Tenho vontade de dizer pra ele que um homem tocando bem um instrumento é um Deus. Alça-se às estrelas e a uma categoria dos que estão além deste tempo, talvez deste mundo. Embora seja impossível fazer música fora deste mundo.

Os que trazem o belo para nós jamais deveriam adoecer ou morrer. Deveriam pairar incorpóreos sobre nós como as notas que extraem de seus instrumentos.

Vim ao banheiro para tomar banho, mas desisti. Escuto com devoção.

A beleza nos tira as tensões. Tanto é assim que me recostei aqui no assento da privada- donde ouço este meu concerto matinal. Sem querer, por relaxar as costas, acionei a descarga com o peso do corpo.

Não quero perder uma só nota. Reteso meu corpo para que as costas se alinhem rapidamente e o silêncio invade novamente o banheiro.

Ele, o músico, diz agora “Está errado” e sinto que houve alguma dificuldade na execução deste trecho.

Um artesão. Fazendo com que seus dedos se tornem cada vez mais precisos e as notas cada vez mais limpas. O que move alguém a fazer algo assim, de forma tão exata num mundo onde ninguém mais se importa com nada?

Sim, caro vizinho desconhecido, toque. Seja o Deus, seja você mesmo.

O telefone toca.

Contrariada vou atendê-lo. Volto correndo. A música não parou. E eu poderia ouvi-la até o fim dos meus dias. Fiel a ela como não fui fiel a nada do que fiz até hoje.

O telefone tocou novamente.

Já estou inquieta. Decido que vou tomar banho.

E a música? E a fidelidade imaginada eterna?

Penso aquilo que costumo pensar ao abandonar às coisas que me extasiam. Hei de ouvi-la novamente.

Mas o que sei eu sobre o futuro? O casal de passarinhos que se mudou definitivamente para o meu ar condicionado voltou. Mas as coisas belas não são sempre os passarinhos vadios da minha janela. E esta música, jamais a ouvi antes.

Muitas coisas belas eu as deixei e nunca mais as vi.

Ocorre-me aplaudi-lo.

Melhor não. O que ele faz, a forma como o faz, parece bastá-lo. E já deve ter ouvido muitos aplausos na vida- certamente é um profissional. Algum músico visitando alguém, de passagem por aqui.

Custa-me a crer que alguém, um simples mortal, toque assim, tão divinamente.

Agradeço em silêncio pela oportunidade de estar ali, ouvindo algo tão bonito. E vou tomar meu banho. Sou moderna demais para eternidades. Sou ansiosa demais para a contemplação.

Provavelmente sempre que entrar no banheiro daqui pra frente vou torcer para que novamente o vizinho esteja tocando.

O desejo de eternidade vem para o papel, depois para o blog. Neste mundo sem chão, faço a gravação deste momento.

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