Desde que vovô saiu de casa, vovó ficou estranha. Não queria mais comer chocolate, ela que sempre comia muito chocolate. Não queria mais passear no Shopping Center, ela que adorava ver as modas. Não falava mais no telefone com as amigas, ela que tinha contas de telefone gigantescas. Não ia no cinema, uma pessoa que sabia de cor nome de diretores, atores, produtores de filmes. Não lia nada, a pessoa que mais eu vi ler na vida. Vovó que curtia um monte de coisas, deprimiu. E não saía mais de casa.
Sempre passo aqui na casa da vovó porque é o lugar onde consigo me concentrar e estudar. Lá em casa é um inferno, não tem como. Aí um belo dia cheguei aqui e vovó não estava. Fiquei aqui até tarde da noite e nada de vovó.
Sou partidário da tese da minha mãe que notícia ruim corre rápido então nem comentei nada em casa sobre este desaparecimento da vovó. Mas fiquei um pouco preocupado.
No dia seguinte, vovó me ligou. E dava pra ouvir que ela estava na rua, num lugar bem barulhento. Dona Norma estava tão animada que nem parecia aquela estranha vovó deprê que fiquei vendo durante dois anos seguidos. Ela tinha voltado a ser a pessoa que conheci quando criança e isto me deixou bem contente. Só tinha um detalhe: vovó nunca mais estava em casa. Passava o dia inteiro na rua e quando eu saía da casa dela tarde da noite, nada de Dona Norma.
Faço faculdade de Engenharia e mal tenho tempo pra me coçar, que dirá entrar em Facebook, mas um dia resolvi abrir um vídeo da Midia Ninja que uma garota que estou afim compartilhou e aí, quem é que eu vejo bem na frente de uma das manifestações? Dona Norma. Mas ela não estava com a cara descoberta. Reconheci porque sou capaz de reconhecer minha avó até fantasiada de Black Block.
Vi o vídeo umas dez vezes. Era Dona Norma sim. Dona Norma corria da polícia. Dona Norma usava máscara. Dona Norma toda de preto. Dona Norma era Black Block e mandava o prefeito e o governador pra longe do Brasil.
Quando ela me ligou no dia seguinte (todos os dias de tarde ela me ligava), resolvi puxar assunto e comecei a falar que havia uns “baderneiros” na Assembléia. Era só pra ver como ela reagia mesmo. Eu nem acho que o pessoal é baderneiro. Mas precisava provocar pra ter certeza do que eu havia visto no vídeo.
Não deu outra. Vovó se entregou. Começou a falar que baderneiro era o prefeito que levava o cachorrinho pra passear de helicóptero com o dinheiro público em vez de pagar um salário decente pros professores. Que baderneiros eram os caras que aprovavam fazer um estádio de futebol caríssimo quando precisávamos de mais escolas e hospitais. Vovó falou que o povo estava sendo ludibriado, que vivíamos numa ditadura, a ditadura do capitalismo, que Marx já tinha avisado, enfim, vovó falava de revoluções, do fim do sistema, que todos os partidos políticos eram corruptos aqui e no mundo todo, vovó era uma anarco-comunista radical a favor da desobediência civil.
Meu queixo caiu.
Nem conseguia mais estudar direito porque cada vez que via que as manifestações tinham acabado em porrada, pensava na minha avó. Como é que uma senhora, que a vida toda tinha gostado do bom e do melhor, que havia viajado pelo mundo todo, que adorava o perfume Paloma Picasso, como é que uma senhora que gostava mesmo era de vestir Maria Bonita, como é que uma senhora assim, de repente, da noite para o dia, tinha virado uma Black Block?
Num dos telefonemas, ela me chamou de burguês reacionário, só porque eu disse que ela precisava parar de querer resolver tudo na base do coquetel molotov.
No dia da prisão da Sininho, Dona Norma conseguiu escapar por um tris. Mas quebrou o pé, graças a Deus. Inventei uma crise existencial profunda só pra fazer ela ficar em casa me dando atenção. Porque vovó pode até ter virado Black Block, mas eu ainda sou o neto predileto dela.
Tenho de torcer pro nosso prefeito não aprontar mais nada, se não é capaz dela ir pra rua e me convencer a ir também.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
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