segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Pela Eutanásia


Dia 14 de julho de 2011 minha tia que era minha mãe (ou minha mãe que era minha tia) se suicidou. Pulou do 15º andar após ter tido recentemente um diagnóstico de Alzheimer.
Há muitos anos atrás, um padrinho, marido da irmã dela, teve esta mesma doença, então ela sabia exatamente qual o processo do mal.

Minha mãe-tia sofria de insônia e desde quando eu tinha dezesseis anos ela dizia que ia se matar. Entretanto, apesar de ela sempre dizer que iria se suicidar, foi a confirmação do diagnóstico desta doença- ainda no início- e o fato dela saber que não poderia mais levar a vida independente que levava e que passaria a ser um pesado fardo para sua pequena família- sou sua filha única- que a levaram a este ato tão violento. Sem este diagnóstico, talvez ela passasse mais trinta anos dizendo que ia se matar e não se matando, de fato.
Gostaria que ela tivesse conversado mais e confiado mais em mim. Eu a trataria. E, sem dúvida, obedeceria a seus desejos. Quando a doença estivesse mais avançada, se ela ainda assim o desejasse, eu a levaria ao Uruguai onde a eutanásia é permitida. Não sei como a internaria por lá, mas com certeza, daria meus jeitos.

Como não pude fazer isso, escrevo este texto em homenagem a esta mulher corajosa, determinada e bela que ela sempre foi torcendo para que de alguma maneira isto colabore para mudanças fundamentais na nossa sociedade e em nossas leis.

Alzheimer é uma doença democrática. Dá em qualquer um. Pretos ou brancos. Ricos ou pobres. Ateus e religiosos. E os torna, a todos, não apenas incapazes como dependentes de terceiros. O custo é altíssimo, em todos os termos que se possa pensar: existencial, emocional e econômico. Famílias se desmantelam, vidas desmoronam e quando o paciente de Alzheimer finalmente falece, é um alívio para todos- verdade seja dita. A morte dela foi muito triste, mas também foi um alívio para todos.

Não falar sobre isso de nada adianta. Preconceito também nada adianta. Sejamos claros, firmes e sinceros. É preciso falar sobre coisas que não gostamos de falar, porque a quantidade de idosos suicidas é tamanha que é fundamental que se criem políticas públicas condizentes com a gravidade deste problema.

O assunto suicídio é tabu e quem auxilia a um suicida tem como pena de dois a seis anos de reclusão.

Procurei na internet informações sobre o assunto: há relativamente poucas, comparadas a enxurrada de dados sobre outros temas. A síntese do que encontrei, em termos de estatísticas, entretanto é a mesma: a maior taxa de suicídios cometidos no Brasil são de idosos. Os velhinhos se suicidam como moscas. Suicídios de idosos barram longe qualquer outro tipo de suicida.

A pergunta que faço a seguir é: destes idosos que cometem o suicídio, quantos são os que receberam um diagnóstico de doenças sem cura, irreversíveis até o momento, como o Alzheimer ou outras semelhantes? E mesmo no público restante, pessoas de outras faixas etárias que cometem o suicídio: quantos destes na verdade não foram pessoas que receberam um diagnóstico de alguma doença muito grave e sem possibilidades de melhoras?

Feitas estas questões, outra se impõe: quem, exceto pessoas com fortes crenças religiosas, já não imaginaram que diante de certas dores, infligidas por alguma doença ou sequelas de sinistros a vida não mais valeria a pena e a morte seria a única coisa bem vinda?

Citando o Alzheimer como exemplo, uma pessoa com esta doença não pode ser deixada só, mas tampouco deve ser internada num asilo- o que deixa familiares e responsáveis pelo doente numa sinuca de bico.

Nossas casas em geral não são construídas de modo a lidar com pacientes que eventualmente terão delírios e alucinações, não contamos com equipes de segurança que impeçam nossos idosos de fugirem, nossas casas não têm grades nas janelas para evitarem que os doentes saltem por elas, enfim, nas grandes cidades tudo concorre para tornar a vida de um doente deste tipo de mal algo extremamente difícil.

Por outro lado, o custo hoje de uma enfermeira profissional particular varia, mas o mínimo é de dois mil e trezentos reais- para uma que fique por doze horas diárias em cinco dias da semana. Para o acompanhamento permanente feito por uma profissional qualificada, é necessária uma equipe com no mínimo três. Só com a enfermagem o custo da doença chega fácil a seis mil e novecentos reais. Somados os remédios e a alimentação, não apenas do paciente, mas da própria enfermeira, teremos algo em torno de oito mil reais. Sem luxo algum, na maior simplicidade. Como neste orçamento não contei os gastos em obras necessárias para tornar uma casa comum num lugar que ofereça toda a segurança para um paciente com este tipo de diagnóstico, podemos imaginar que o custo total mensal desta doença não vá resultar em menos do que dez mil mensais.

Quem pode arcar com uma despesa destas? Como é que os pobres fazem quando seus familiares têm estes diagnósticos?

Ainda falando de como esta doença é cara, é característica deste tipo de paciente a instabilidade do quadro e que eles não se apercebam da gravidade de seu estado e resistam à colocação de enfermeiros para assisti-los. Então também é fato corriqueiro que a família seja obrigada a demitir profissionais por conta desta resistência, consequentemente também são comuns os processos judiciais de enfermeiros contra seus patrões particulares- o que faz com que surjam as agências e cooperativas que por um custo x se encarregam destes encargos sociais e oferecem seu quadro de funcionários. Estas agências lucram com este estado de coisas e cobram caro por seus serviços, naturalmente. Então, consequentemente, o custo do doente sobe e a insalubridade da situação atinge os píncaros do absurdo.

Hoje no Brasil, uma família brasileira gasta mais com uma doença irreversível e sem possibilidades de melhoras do que numa faculdade de um filho, porque uma faculdade pode ser deixada de lado ao passo que o familiar doente não. Famílias se arruínam se desentendem e se desfazem e o quadro permanece inalterado. Um diagnóstico de Alzheimer ou Parkinson é uma condenação não à morte, mas a vida dos mortos vivos, da ruína, da desgraça sem solução.

O correto seriam equipes multidisciplinares, com psicólogos, psiquiatras, cuidadoras e enfermeiras que dessem assistência às famílias dos doentes oferecidos pelo próprio Estado, mas isto não existe aqui. Com equipes multidisciplinares, o paciente poderia ser mantido em casa com segurança para si e para os seus. Não se correria o risco de esquecer-se de se colocar uma grade num apartamento que está no décimo quinto andar, porque estes detalhes seriam imediatamente vistos e resolvidos por estas equipes, que contariam com pedreiros e profissionais especializados em cada questão. E, de preferência, estes seriam serviços oferecidos gratuitamente, toda família teria direito a isto. Poderíamos cuidar de nossos velhos sem que para isto tivéssemos de esquecer nossos jovens.

Mas esta não é nossa realidade. Este é o sonho de muitos que lidam com esta doença infernal.

No atual estado de coisas, uma pessoa que se suicide por ter uma doença grave e irreversível torna-se automaticamente um fenômeno da ordem pública.
Seu cadáver será manipulado dentro das mesmas condições dos corpos de criminosos, mendigos, vítimas de acidentes e afins. O caso de suicídio é um caso de polícia, ficando a família da vítima sujeita aos mesmos tratos- e às mesmas suspeitas- que as famílias de criminosos.

No Instituto Médico Legal, um corpo que chegue às seis da manhã só é liberado no mínimo seis horas depois. No Rio, em determinados dias, há apenas um médico legista para tomar conta de todos os corpos que dão entrada no local. Os trâmites burocráticos são inúmeros e a justificativa de tal fato é que há muitos fraudadores que podem se beneficiar de alguma negligência cometida pelos especialistas encarregados do processo de exame e liberação dos corpos. Consequentemente, a família já naturalmente enlutada e abalada pela violência de um suicídio é obrigada a tomar parte de um dos mais sinistros espetáculos que se pode ver: a permanência no IML.

A eutanásia, a boa morte, é permitida em poucos lugares no mundo. Se a eutanásia fosse legalizada no Brasil, quantas destas pessoas poderiam ter sido mais bem acompanhadas e assistidas no seu momento final? Se houvesse um meio legal de se assinar um documento e depois ter sua morte previamente agendada e assistida por médicos e familiares, quantos destes suicidas não poderiam ter sido poupados deste ato tão desesperado e solitário?
Uma coisa é certa: o quadro que temos hoje é caótico, cruel e ineficiente. A saúde pública não dá conta, a saúde privada também não.

E como seria diferente? Não podemos nos esquecer de que o nosso país, até poucas décadas atrás, tinha um altíssimo índice de analfabetismo e, portanto, até bem pouco tempo atrás nosso estado não dava conta nem dos que estavam com saúde, que dirá de seus doentes.
Mas estamos em momentos de mudança. Nossas leis estão sendo revistas, a condição de vida de todos está melhorando, nosso país está se tornando cada vez mais próspero e mais estável. Não seria hora de pararmos com a hipocrisia e lidarmos com sinceridade na questão da eutanásia ser finalmente legalizada no Brasil?

Claro que gostaria que a cura do Alzheimer fosse encontrada. Mas por ora não foi. Então, por enquanto, o melhor para todos nós seria que a eutanásia fosse permitida. Ou sabe-se Deus quantos velhinhos mais veremos se suicidando por aí.